quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

600 anos de pseudo-tradição tunante

Quando passamos os olhos por inúmero sites e bibliografa diversa, é comum encontrarmos referências com chancela de dogma, de que a Tuna é uma tradição de 6 séculos, provinda do tempo dos goliardos e dos sopistas,  ou seja uma mui antiga tradição com raízes nas primeiras universidades, blá, blá, blá........ : os argumentos e teses do costume.
Muitos distintos estudiosos partem desse princípio, mesmo que a quase a totalidade deles nunca tenha realizado um estudo profundo e imparcial sobre isso. Aliás, até mesmo em Emilio de la Cruz Aguilar se nota, como em tantos outros, um parcialismo que leva a omitir muitos factos e a colar outros tantos, num exercício similar ao que Dan Brown fez com o Código da Vinci, resultando desse mesmo exercício criativo, uma plausibilidade que poucos questionam, mas que não deixa de ser romance histórico ficcionado.
Tornou-se, pois, pilar histórico de que a Tuna é uma longa tradição de séculos e séculos.
Assim fomos educados e ensinados, é facto.

Quanto disso é, de facto, verdade?

Ora, aí está o grande problema. Quando estudamos, de forma sistemática, com critérios e metodologia investigativa séria, sabemos poder encontrar dados que poderão, eventualmente, desconstruir um conjunto considerável de verdades que até nós mesmos julgávamos inquestionáveis.
É o risco que se corre quando se esgravata o passado, quando se passam longas horas em arquivos perdidos em catacumbas, em documentos esquecidos pelo tempo, quando alguém decide ir mais além das lições canónicas reproduzidas vezes sem conta, tal programa educativo, onde nada se questiona e tudo se decora eassimila como verdade, à boa moda do ensino da história na China ou na Rússia ou, para não irmos tão longe, do país em tempo do Estado Novo.

Sem adiantar, em demasia, aquilo que, em breve, estará nos escaparates, por mão do CoSaGaPe, e baseando-me na informação resultante dessa investigação, desde logo desmistificar e dizer que não. Não, a Tuna não é um tradição de 6 séculos, mas de apenas 1 (um), porque apenas surgida na 2ª metade do séc. XIX, derivada das comparsas carnavalescas que vieram a dar em estudantinas e, aí sim, mais tarde (com o objectivo de distinguir as estudantinas estudantis das populares) o aparecimento da terminologia Tuna, como identificativa de formato musical composta apenas por estudantes (algo que funcionou em Espanha, mas que por cá não, dado que também o foro popular, rural e urbano, adopta e se apropria quer do termo Estudantina, quer do termo Tuna).
Aliás, é nessa altura que, para diferenciar os estudantes dos demais, estes, escolhem o termo tuna, recuperando o vocábulo da sua longa história e diagese, semelhante que era a sua significância com o carácter irreverente, algo libertino e inconformado da jovial idade - tão semelhante, e tantas vezes cruzada, era a vida de muitos estudantes abandonados ao ócio em detrimento do estudo.
É pois, nesse altura, que nascem os tunos (epíteto que passa a significar aquele que pertence a uma tuna), sendo que antes tinha carga adjectival, que tanto podia ser usada para caracterizar um estudante como um pedreiro (significando trapaceiro, embusteiro....).

Antes disso, os estudantes que formavam as comparsas e a estudantinas eram apenas estudantes, eram apenas membros/elementos da comparsa ou da estudantina. Veja-se, por exemplo, que são inúmeras as referências que dizem "los estudiantes de la tuna", ao invés, simplesmente de "tunos", e que, outras tantas vezes se noticiam as tunas nas suas digressões, mas se diz a respeito dos seus componentes que eram apenas estudantes (e não tunos). Significa, isso que, durante algum tempo, a designação "tuno", para referir o estudante pertencente à tuna, não estava ainda em uso, ou em uso generalizado.

Dizer, pois, que antes do séc. XIX não existiam tunas; nunca existiram, segundo os documentos existentes à data.
Antes disso existia o "correr la tuna", o "andar à tuna" (e todos os vocábulos pertencentes à respectiva família de palavras) com a significância de andar vagueando, de mendicidade, de trapaça, de boémia, de marginalidade....no fundo, um conjunto de conceitos que eram pejorativos, tanto aplicados as estudantes como não (aliás não existe distinção sequer).

Obviamente que, pelo prestígio que lhe advinha de estudar na universidade, a figura do estudante acabou por sobressair como paradigma, o que facilitou a tarefa de o pintar das formas mais românticas (e parciais, diga-se), à boa maneira da literatura de cordel da época, enchendo ideários juvenis daquelas sempre presentes imagens quixotescas e dos intemporais romances de capa e espada.
Convenientemente, apagou-se, ou omitiu-se, todo, ou parte, do carácter pejorativo que constituía ser apelidado de tuno ou  dizer de alguém que andava à tuna, na larga maioria dos escritos e estudos sobre este fenómeno (e veja-se que os autores são todos tunos, logo extremamente parciais na escolha dos dados que constituem a sua narrativa).


Só os dicionários mantiveram incólume, ao longo dos séculos, os significados dos termos tuna, tuno, tunante, tunanteiro, etc., sendo que apenas em finais do séc. XIX, e já  no séc. XX, surgem as primeiras referências a Tuna/Estudantina (termos sinónimos) como sendo grupo musical, como formato caracterizado pro ser constituído por instrumentos de cordas.

E as ditas tradições que viriam desde os tempos remotos dos goliardos, dos sopistas, pícaros, etc?

Bem, neste caso, temos  de ir até ao tempo do Franquismo e perceber a influência que o S.E.U. (Sindicato Espanhol Universitário) teve na diagese da Tuna.

Foi nessa altura que a Tuna ganha uma formalidade, regras e enquadramento unificador até aí inexistentes. Mesmo que imposta, essa nova política acabará, no entender de muitos, por trazer enormes benefícios na promoção e salvaguarda do fenómeno.
Com a adopção do traje (o que actualmente conhecemos) e um controle rigoroso sobre o reconhecimento inter-pares e reconhecimento pelo próprio sindicato (para se ser Tuna, e para a ela pertencer, havia que receber autorização e estar em conformidade com os parâmetros definidos pelo regime), a tuna continuava a ser meramente um grupo musical, como sempre o fora até então (e caí aqui mais um mito intemporal).


A Tuna precisava de "pedigree" que suportasse, inclusive, o próprio traje (recuperado dos tempos do Siglo de Oropela Estudiantina Fígaro - supostamente uma mescla de panos de várias épocas retirados do guarda-roupa de um teatro madrileno, conforme atestam os especialistas, dado que, até aí, não existiam becas e jibões, mas apenas o traje escolar, cujo o porte obrigatório fora abolido).


Onde ir buscar?
Nada melhor do que aos muitos costumes estudantis que sempre se registaram ao longo da história, escolhendo/seleccionando os que mais se adequavam à Tuna, adaptando e adequando e, no fundo, tentando uma enxertia que, temos de convir, era fácil e lógica de realizar. De certo modo, acabam as tunas, em Espanha, por recuperar e preservar, muitas tradições que tinham caído em desuso ou no esquecimento,nomeadamente com a abolição do traje escolar.

Não se descarta, de todo, a existência de praxis antes do tempo do S.E.U., dado que, tratando-se de estudantes, e tratando-se de organizações, seria normal que as estudantinas e tunas do séc. XIX tivessem os seus ritos e regras internas (a hierarquia e o respeito pela mesma é algo inerente a qualquer grupo organizado), mas o facto é que só a partir do S.E.U. há indícios claros de práticas que reconhecemos, hoje em dia, como próprias da cultura tunante.


Assim, aquilo a que chamamos de longa tradição tunante mais não é do que a reprodução, adaptada e contextualizada da Praxe Académica, da relação entre novos e veteranos, daí os baptismos e as hierarquias, e os muitos usos similares aos que encontramos na relação entre caloiros e veteranos. A isso se acrescentaram outros ritos e práticas entretanto criados, mas sempre na esfera do acima dito, e sempre na cópia ou inspiração de uma pretensa herança secular (que o é, mas não da Tuna, mas sim dos estudantes).

Em suma, a praxis tunante, a sua tradição centenária, mais não é do que um conjunto adaptado e provindo de uma tradição que não tunante, mas meramente estudantil; um conjunto de ritos importados e criteriosamente escolhidos para se adequarem à Tuna e, assim, lhe conferirem o tal "pedigree".

Hoje são uma cultura muito própria, são uma tradição, mas que convém não confundir, por mais truncado que possa parecer o assunto.

Essa colagem natural, não fosse a tuna constituída por estudantes, não deve, contudo, esconder o sol com a peneira. Não é por os tunos terem adoptado certos usos e costumes estudantis seculares que tal significa que a própria tuna seja tão secular quanto os costumes que assimilou, adoptou e passou a reproduzir.


A Tradição Tunante inicia-se, como acima dito, na 2ª metade do séc. XIX, meramente como expressão musical, só mais tarde se revestindo de práticas e ritos que lhe conferiram o cunho sui generis com que chegou aos dias de hoje.

Querer fazer dos goliardos, sopistas e afins, os tunos de outrora, é uma tentação em que muitos se deixaram cair, fruto do desejo de dar à Tuna uma árvore geneológica mais "nobre" e ancestral, por muito de similar e de parecenças que possamos estabelecer.


Se quisermos, até certo ponto, podemos estabelecer a analogia com os ranchos folclóricos que são, também eles, uma criação "recente" (primeiras décadas do séc. XX) e que reproduzem danças e cantares de outrora, de danças e cantos que o povo sempre cultivou de forma espontânea, sem cariz institucional ou performativo, não significando, com isso, que sejam herdeiros das danças tribais da idade da pedra ou dos bailes medievais ou que existissem ranchos no tempo de Francisco Quevedo.

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